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Carta dos Segredos Gastronómicos acompanhada de Sopa Doce

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Já tenho vindo a referir o enorme esforço que algumas autarquias, municípios ou conjunto de municípios têm realizado no sentido de registar e arrolar o património gastronómico da sua área geográfica.
O grande salto, contudo, tem sido o de não serem apenas trabalhos de registo de receitas, sem qualquer tipo de enquadramento, histórico, social e emocional, que estão sempre ligados ao comer de um povo. Antes pelo contrário. O cuidado em nos darem uma visão geográfica, etnográfica, histórica, sociológica, económica, política e cultural é crucial para melhor percebermos e interiorizarmos que o meio faz, sem dúvida nenhuma, o homem e condiciona (ou alarga) as suas escolhas.
São inúmeros já os exemplos feitos para Viseu, como sejam a Carta Gastronómica de Viseu e a Carta Gastronómica da Região de Lafões. Mas os exemplos repetem-se pelo país fora: Figueira da Foz, Lezíria do Tejo, Coimbra, Vinhais, Tâmega e Sousa, entre muitos outros. Muitos destes trabalhos, sendo comparticipados por diversas fundos europeus, têm a sua distribuição gratuita ou disponibilizada online.
Numa edição da Associação de Desenvolvimento Dão, Lafões e Alto Paiva (ADDLAP) chega-nos esta belíssima Carta dos Segredos Gastronómicos : Viseu, Dão, Lafões, Alto Paiva, com coordenação editorial de Olga Cavaleiro, Marta Gonçalves e Local Heroes. Os textos, esses, são de Olga Cavaleiro, a quem devemos excelentes trabalhos na área do património gastronómico, um dos quais, pela Âncora Editora, o Portugal Gastronómico: A Gastronomia Portuguesa e as Cozinhas Regionais.
Folheando os segredos desta carta, vamos viajando nos tempos e nas montanhas de uma vasta região, percorrendo as estações do ano, o dia e a noite, e as festas e trabalhos agrícolas que a todas elas estão associadas. Vamos conhecendo a fome de um povo e as formas de a debelar, vamos ao mais simples da vida, onde um prato de arroz doce na mesa significaria uma abastança própria de um casamento. E a cada história associamos um nome e podemos imaginar uma cara, uma casa, a mesa posta… como seria? E sabemos que a cozinha saía da esfera familiar para a comunidade. Havia até umas receitas com poder de curar. Sempre a sobrevivência.
Nestas páginas (re)aprendemos, através de relatos na primeira pessoa, o que era a economia de subsistência e, mais importante ainda – e cada vez mais – a economia sem desperdício, onde tudo era aproveitado e tinha uma utilização, porque a vida não permitia que fosse de outro modo. O que se tinha, tinha-se a muito custo.
O jejum e a abstinência dos calendários católicos eram cumpridos pois, fora deles, o jejum e a abstinência toma o nome de fome.
Andando por estar serras impressas no papel, passamos da crença à heresia, do cristão ao pagão, num ápice mas em feliz convivência. As estruturas mentais que foram moldadas por séculos de forte granito e de alcateias de lobos, de tudo se socorreram para sobreviver. E vingaram.
Na bacia onde se aparava o sangue levava uma cruz em sal, louro e alho. E dizia-se “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém” para o Sarrabulho coalhar. Era cozido numa panela em ferro com água, sal, louro e alho.

 

Este livro é o melhor e o mais belo roteiro ao sentir da vivência de uma região, emocionando a cada página, a cada fotografia, a cada momento de vida que alguém, justamente mencionado, tirou das suas memórias, do seu coração, dos seus ausentes, para nos oferecer, para nos fazer reflectir de como é cheia de nobreza, daquela que importa, que vem de dentro, não a dos brasões e das cartas de pergaminho, a vida de tantos antes de nós, das serras e dos mares, do granito frio ou das planícies abafadas, das águas sulfúricas ou das nascentes cristalinas.

No Entrudo era a carne, nós tínhamos as chouriças em função da idade de cada filho. No dia de Carnaval, cada um tinha a sua chouricinha. Cada um tinha que ir, ou com as vacas, ou com as ovelhas e, depois, tínhamos cada um a sua chouricinha para comer naquele dia. Levávamos a chouricinha, queijo seco e pão. Comíamos, cantávamos e bailávamos até cansar! A noite e ao meio-dia era feijão cozido com carne e hortaliça! E um arroz de coelho que se matava para aquele dia. No dia seguinte é que não se comia carne. A minha mãe vendia sardinha, era o Sr Poças que a trazia E eu é que deitava o foguete para avisar que já havia sardinha para vender. Havia uma época em que se salgava a sardinha para depois para o Inverno.
M. M. Viegas – Varzielas, Oliveira de Frades

 

Este livro é um autêntico diário de uma grande região, repleta de vidas que se orientavam e ritmavam por outros cardinais e por outros tempos. Quanto a mim, inunda-me uma certa nostalgia de algo que não vivi, uma saudade de coisas que nunca cheirei nem saboreei, uma mágoa por dores e sofrimentos que nunca me infligiram ou experimentei, um sorriso por festas, namoros e canções que não assisti, não tive e não lhe sei a letra. E há também o português? Tão especial, por vezes digno de Aquilo, com termos que já não são de hoje ou caíram em desuso. Isso explica um muito útil glossário nas últimas páginas do livro.

A cada final de capítulo, um Obrigado a todos quantos ajudaram a construir esta obra testemunhal.

(Numa segunda edição espero que corrijam aquela questão gráfica onde muitas das letras “d” estão impressas como sendo um ponto negro)

E para adoçar:

Sopa Doce

Comia-se muita galinha! Fazia-se Canja quando as mulheres pariam. Também se fazia arroz e, quem gostava, punha-lhe sangue. Era o Arroz de Cabidela. Também faziam Galinha Assada no Forno e, quando ela já estava assim muito dura, coziam-na primeiro. E com a água da cozedura faziam Sopa Doce.
Num alguidar de barro, punham pão de trigo molhado na água da cozedura da galinha. Juntavam açúcar, canela e punham dentro do forno.
Era a sobremesa para o dia de Carnaval, mas comia-se muitas vezes.
Célia F. da Costa, M. Alcide Costa Rosa, M. Lourdes da Costa
Prova, Oliveira de Frades
Foram parceiros neste livro o Município de Oliveira de Frades, o Município de São Pedro do Sul, o Município de Vila Nova de Paiva, o Município de Viseu e o Município de Vouzela.
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